quinta-feira, 20 de março de 2008

Banzo e Lamento Negro


BANZO
Eduardo de Oliveira
Paulista. Nascido em 1926. Professor, conferencista,
político. Autor de Banzo, 1965; Gestas Líricas da
Negritude, 1967; Evangelho da Solidão, 1970.


(Ao meu irmão Patrice Lumumba)

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

Trago em meu corpo a marca das chibatas
como rubros degraus feitos de carne
pelos quais as carretas do progresso
iam buscar as brenhas do futuro.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh'alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos,
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos...
e que ainda hoje percutem nestas plagas.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.


LAMENTO NEGRO
(fragmento)

Eu sinto em minhas veias
o grito dos cafezais.

Enxergo em minhas mãos a sombra
dos meus irmãos vergastados pelo chicote
dos senhores da terra.

Aqueles que carregam o Brasil nas costas
não têm túmulos nem legendas;

seu sono não é velado,
seu nome ninguém conhece.

Hoje eles seguem a sina
de uma sorte inglória...
de um destino obscuro.

Como as grandes noites
que se debruçam no parapeito
do tempo, para espiar o mundo,
a minha raça vem contemplando
e trabalhando para a ventura alheia,
debruçada na grande noite
do desespero.

Hoje, se o progresso despeja-se
pelos jardins do meu tempo,
a Pátria que agora é minha
chora prantos de café.

A pátria de hoje
É um pedaço de tristeza
e de soluço dos meus avós,
atirada pelas tumbas sem legendas.

Os meus ancestrais
foram vassalos dela...
escravos dela
e se esqueceram de viver.

A grandeza da minha terra
tem seus pés fincados
na alma da minha gente,
na fome da minha gente,
oculta nos presídios,
nos mocambos, nas favelas,
na hemoptise que escreve com sangue
a sorte da minha raça.

Não mais farei versos bonzinhos
para o agrado dos meus novos senhores.
Escuta, "Capitão do Mato":

Daqui por diante
só cantarei o destino da gente
que estua em meu sangue de negro.
Meu poema terá o gosto amargo
do desespero do meu povo.

(...)

Se a turbulência das praças
arrastarem as multidões
amotinadas pela fome
lá estará o meu grito de rebeldia.
Ser negro é sentir a pujança telúrica
das raças infelizes.
Senzalas, ritos, cafezais
são símbolos de ontem
que relembram escravidão.
Favelas, salários, sindicatos,
são emblemas de agora, chicoteando
o rosto de meus irmãos. (...)

[De Banzo, 2a. ed. São Paulo: Obelisco, 1965.]

Um comentário:

Eduardo Sena disse...

A escravidão não terminou. Há negros sobrevivendo, assim como escravizados de todas as cores. Não se quer voltar para a África. O banzo é uma saída.