sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Cláusula 39ª


Cláusula 39ª
Fátima Nascimento

Dias atrás recebi o convite do amado e gentil Pr. Domingos para tornar-me sócia da Padaria Espiritual – segundo o que entendi, um grupo de amigos que tem como objetivo fertilizar idéias, comungar vivências, por à prova as “certezas”, percepções e sentimentos, compartilhando o pão do espírito humano, suscitando o apetite pelo Pão do Céu e pela abundante riqueza do universo feminino... espero... Haha!, Aliás, quem dá uma aula dessa matéria em questão é o Gilberto Gil - Duvidam? Pra mim esse cara é que sabe tudo de “teologia”:

SUPER HOMEM A CANÇÃO - Gilberto Gil
Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria / Que o mundo masculino tudo me daria / Do que eu quisesse ter... / Que nada / Minha porção mulher que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora/ É que me faz viver... / Quem dera! / Pudesse todo homem compreender / Oh Mãe! Quem dera... ...Por causa da mulher...
Passeando por aí, no Ciberespaço, encontrei quarenta e oito cláusulas muito curiosas, certamente já conhecidas por todos, compondo um Estatuto amassado e assado na "Padaria Espiritual" do século XIX. O conteúdo de algumas delas me impressionou bastante e, sendo assim, gostaria de estrear como “padeira” nessa nobre Sociedade, tecendo alguns comentários a respeito.

Cláusula 39ª- as mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio, excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.
Ao ler a expressão “entes frágeis”, fiquei imaginando que talvez por conta da influência do legado patriarcal e do movimento romântico sorvido através da literatura consumida pelos tais amassadores juvenis de então, pensava-se a respeito das mulheres (que o tal grupo de literatos considerasse elevadas e merecedoras), como sendo estas, seres mais próximos do “divino” e do etéreo, que do humano. Talvez não fosse mesmo útil e sensato aceitar “fantasmas”, “seres”, “entidades” ou meras projeções no corpo dos membros da Padaria “provedora” de soluções geniais.

Extraordinário pensar que aquele grupo em particular, tenha sido criado exatamente como tentativa de erradicar ou atenuar opressões e preconceitos latentes na sociedade de então - operar em causas humanitárias, etc, etc. Nas palavras do pastor Ricardo Gondim: “promover a escrita, mas sem o ranço de outras agremiações que se perdiam com burocracias e linguagem impoluta”.

Imaginem só um grupo de sujeitos provavelmente nem desmamados dos peitos de alguma mucama, chamando de “entes frágeis” as poucas mulheres que se encaixavam em seu conceito do que seriam mulheres castas e dignas de receber seu “apoio” - apoio de meros ladrões de fogo roubado do céu e fazedores de experiências... Haha!.. Não é assim que poderíamos definir um literato, mesmo um de primeira água?

A julgar pelo conteúdo desta cláusula, penso ser possível que o condicionamento dos membros da gênese da Padaria, tenha levado os mesmos a verem o mundo como um objeto, ao ponto de se imaginarem separados dele - e talvez tenham ido até mais longe do que isso: por meio do ego, acharam que eram observadores afastados até de si mesmos.

Para poderem exercer uma suposta objetividade (visão do mundo fragmentada e restrita), foi necessário que estabelecessem uma fronteira, uma divisão entre o ego e o mundo (entes frágeis = mulheres da nobreza e o resto = fumistas, freiras e professoras ignorantes...), e também entre o ego e o restante de sua totalidade. Dessa forma ficaram divididos – e, em se dividindo, o mesmo deve ter acontecido ao seu conhecimento, que por isso resultou limitado, limitante e preconceituoso, como se pode facilmente observar. Agora confessem: faltou ou não a inserção de ao menos umas duas mulheres naquele grupinho de calças frouxas, hein? Rsrsrsrsr...

Vale ressaltar que as mulheres são possuidoras de uma sensibilidade bem mais delicada que a do homem - segundo o que concluí olhando dentro e fora de mim mesma e também nas coisas de Kierkegaard: “O ser feminino é dedicação e abandono. Com efeito, foi por causa de todo esse abandono feminino do seu ser, que Deus com ternura, armou a mulher com um instinto, cuja sutileza ultrapassa a mais lúcida reflexão masculina e a reduz a nada.”

Isso sem falar na discriminação e reducionismo embutidos no Estatuto dos rapazes que se pretendiam os defensores das “causas humanitárias”. Daí fico pensando: será que segundo eles, “entes frágeis” ( aquilo que existe ou supomos existir... ), fumistas, freiras e professoras ignorantes entrariam na categoria de humanos?

É aquela velha história – e põe velha nisso! - segundo o H. Mariotti, o reducionismo é como o ego: indispensável, mas questionável. Diante de um determinado fenômeno, nós o percebemos e reduzimos o que foi percebido à nossa estrutura de compreensão – ao nosso conhecimento, portanto. Mas, como é óbvio, reduzir ao nosso conhecimento é o mesmo que reduzi-lo à nossa ignorância. Daí a necessidade de um segundo passo – a reampliação – que consiste em conferir o que foi percebido. “PADARIA ESPIRITUAL”?

Ainda imaginei que uma Padaria Espiritual, tanto em dias passados como nos tempos atuais, poderia, sem o menor prejuízo de sua qualidade e eficácia, ser composta por uns vinte homens, à semelhança daquela fundada pelo tio do Pr. Ricardo, e uma única mulher que fosse mãe.

Os vinte indivíduos se prestariam a entrevistar essa única representante do sexo feminino todas as noites, dessas entrevistas surgiriam artigos inéditos, crônicas, poemas, poesia, canções, pinturas, danças e todo tipo de manifestação colhida no ilimitado, na abertura e no poético da experiência singular com essa mulher, mãe e, portanto, embaixadora de todas as:

“Mulheres, mães... heroínas anônimas, doadoras da vida, doadoras de amor, aquelas que banham as carnes das crianças, acalmam os gritos, enchem as bocas, essas serventes imemoriais cujos gestos trazem o conforto, a limpeza, o prazer, as humildes das humildes, guerreiras do cotidiano, rainhas da atenção, imperatrizes da ternura, que curam nossas feridas e nossas aflições. Os homens guardam as portas da sociedade que engendra mortos e devolve o ódio. As mulheres guardam as portas da natureza, que fabrica a vida e exige o amor”. (E.E.S.).

Ao final da entrevista, certamente a satisfação geral se refletiria nas feições e batimentos do coração - feições outrora entristecidas pelas incertezas e por um ardente desejo de ir além, e batimentos lentos de corações ainda famintos, muito embora repletos de saber. Todos seriam fartos do pão do espírito que possui a “forma”, o aroma, a textura e sabor mais semelhantes Àquele que desceu do Céu, o pão do espírito feminino.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

À sombra da felicidade


À sombra da felicidade
Miguel Garcia

Naquela tarde benfazeja, tudo em redor se fez lentidão, demora... vagueava o pensamento e então meu olhar caminhou sem destino pelas sobras das horas...

Aninhado nos braços de um enorme esgotamento físico, adormeci em um banco perolado - reluzente como néon que acende paisagem soturna, numa quietude aberta entre o meio dia e o anoitecer.

De súbito, por não mais suportar os ruídos de um silêncio que afligia, como que por intuição antevi um ensejo flutuando ao sabor de um mar de memórias vagas... ao redor, a orgia de vegetais viris penetrando e fertilizando a terra com raízes nuas despudoradas - voyeurismo espelhado em lembranças tão quiméricas minhas...

Deitado e suspenso no poder da totalidade, adormecido e acordado, num real/absurdo, crepitava a alma na ardente paixão de viver, a luz atravessava tudo, possuía o mundo, lambia o suor da minha pele que gozava sem parar o existir...

Gemido das correntes de ar - erotismo nos galhos e folhas roçando aragens libertinas, flores prontas pra beijar e arranhar olhos cobiçosos – invadindo feito Mab a parteira das fadas, como um espírito, varando corpos virgens com aromas enfeitiçantes-engravidantes...

À esquerda da felicidade, as Choronas, três delas, como as Parcas, fiandeiras do destino dos que repousam sob lamentos sombrios... Ao centro do jardim, um rio, como no Éden, cochilava sossegado logo abaixo das palmeiras imperiais - anunciação de um Reino Presente, enquanto roseiras solitárias renunciavam pétalas vermelhas quentes, num sacrifício de amor que escorria tingindo o solo da sensibilidade.

De repente tudo fazia sentido e eu já não era separado de Deus, da natureza ou de mim... estava tão pleno...

Deitado à sombra de uma árvore de eixo dividido e multiplicado, se expandindo até roçar a imensidão azul, de onde pequenos sóis travessos me espiavam pelas frestas de ramarias serpenteando, entre cachos e mais cachos de uma esperança verde-limão, suavemente perfumados, tenros - ligação entre dois mundos, foi então que vivi a aventura de abrir as janelas do corpo e da alma, à sombra de um arbóreo encantado, à sombra da felicidade
.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Correnteza


Correnteza
Miguel Garcia

“É natural que toda calamidade, todas as aflições que nos surpreendam em meio ao divertimento, provocassem em nós uma impressão mais forte do que em qualquer outro momento, não só porque sentimos mais vivamente o contraste, mas porque os nossos sentidos, já despertados à emoção, ficam muito mais suscetíveis”. Goethe

Uma criança e uma mulher podem morrer e um homem desaparecer numa tarde de domingo após serem arrastados pela correnteza de um ribeirão de frustrações, decepções e angustias, na instância da subjetividade, a quilômetros de uma esperança qualquer.

Viver é como acampar às margens de uma cachoeira em tarde de domingo, é como brincar em águas rasas e cristalinas, na Serra dos ideais.

Viver é encontrar-se, sem saber, no caminho de algum desastre, pois se a chuva do absurdo não absoluto cai livremente em toda a região da existência, é certo que o nível desse líquido de risco, acumulado em regatos de exasperações, por sua vez conectados entre si e não tão distantes uns dos outros, subirão, algumas vezes pra além da normalidade, ameaçando levar seres brincantes e despreocupados nas águas de sua correnteza...

Sendo este o caso e acionados os salvadores bombeiros da religião, psicanálise, psiquiatria, verificaríamos a remissão de alguns sobreviventes, a poucos metros do local da queda d’água/calamitosa, onde se encontrariam agarrados em galhos de afetividade.

Contudo, corpos embebidos de morte seriam resgatados pelos psico-resgatadores e religiosos no fim da manhã do dia seguinte ao infortúnio violento, a alguns quilômetros da cachoeira da Serra dos ideais, próximo ao local onde o ribeirão de frustrações, decepções e angustias desaguaria na eternidade.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Querubim


Querubim
Miguel Garcia


Da janela vejo a Lua suspensa na face da noite, flutuando tal qual jóia rara na orelha de uma etíope, visão que me embala e transporta à carruagem divina dos sonhos, desejos, lampejos, dos beijos, apertos e arranhões de amor.

Como sem perceber perco a gravidade, ou ela se perde de mim e escapo, me afasto para longe do tempo e espaço, do possível e para além, do embaraço, das correntes pesadas dos fatos, concretude, densidade e real, atravesso o espelho da vida e de tudo.

Ingresso no sem endereço, nesse nada de coisa alguma, meu anseio é sacramento, é poder evocativo, símbolo de uma grandeza, essência da mais pura beleza, emblema de um mistério revelado... sou alado... e também posso voar sobre as asas do vento - carruagens celestes... e enquanto viajo, contemplar paisagens de histórias, memórias, das glórias, dos povos, dos mundos, planetas, cometas, estrelas, dos homens, invenções, maquinais, estações, sentimentos.

Assim como Mab a parteira das fadas, corro na aventura das horas e atravesso o cérebro dos amantes, enquanto estes, sonham coisas de amor... como seta que se atreve a voar mais longe e penetrar mais fundo do que permite o arco, sigo no vôo de meus olhos livres...

De repente a evidência se impõe: sou mais do eu mesmo, sou resumo dos homens, da humanidade, "superando" dificuldades sou único, sou eu, sou querubim... lindo como um querubim, lindo e comum, querubim, eu sou lindo e comum, lindo como um, lindo e comum, querubim.

O caminho da árvore viva dos afetos, guardo para viajantes nus e audazes. Comer frutos à sombra de arbóreos, aspirando aromas floríferos, requer a pureza da intenção de amar.

Sou aquilo que evoca, nevoeiro, sou gerado, sou espesso, cerração, chuvoso, arcano, sou delícioso... sou segredo... vórtice profundo, sou ruína, sombra...sou mudo, sou medo... Eu sígno dourado, sou clonado, duas faces, refletor, guardião, enfeitiçado, ventania e tempestade, sou veloz, sou menino e beija-flor, um enviado... um herói.

Se eu cair da atmosfera ilimitada dos ideais, que o abismo seja largo e profundo... desse modo terei graça pra exibir elev-ação dos pensamentos, sustentando-me e movendo no soprar das incertezas - êxtase em minhas asas... impulso ligeiro em gestos de sobrevivência, propalar sublime depois de rasantes ousadias...

Ousadia de voltar às alturas de mim mesmo... regressar pra ser Keruv – o que envolve... como um repolho - envoltório e proteção, útero da poesia, ninho de um silêncio, manjedoura que acolhe um deus-menino-alado... todo regresso é eclosão de beleza, de ternura e inocência, é mágia que me faz ser lindo como um querubim... lindo e comum ..., lindo como um... querubim.