terça-feira, 17 de abril de 2012

Sobre rostos belos e trans-parentes de Eternidade

Sobre rostos belos e trans-parentes de Eternidade
Miguel Garcia

Concordo com Beker quanto à afirmação que não há uma resposta garantida para o temeroso mistério do rosto humano que se examina ao espelho.
Um rosto pode ter aparencia divinal e miraculosa, contudo, meu eu menino não dispõe do poder sobrenatural para saber o que ele significa, não dispõe do vigor sobre-humano responsável pelo aparecimento de tais realidades cativantes. E é aí que desfaleço em espírito, sentindo-me insuportavelmente “oprimido” (o-pressão de beleza) por tamanho peso. Afundo sobre um oblívio de beleza, sempre que atingido pela misteriosidade que um rosto adorável irradia.
Uma criança derrotada pelo caráter esmagador da realidade e da experiência me habita. Perco a serenidade necessária em um mundo não-instintal. Jamais abandonei o êxtase. Jamais superei o temor respeitoso, deixando para trás o assombro e o "terror" ante o irresistivelmente Belo  – o fascínio por contornos mágicos. Jamais fui capaz de ações autoconfiantes e descontraídas; não naturalizei meu mundo, ou o contrário disso: jamais desnaturalizei meus ambi-entes, falsificando-os com a “verdade” escurecida, o desespero da condição básica humana escondido. Vislumbro em meus sonhos noturnos e nas fobias e neuroses diurnas, o verdadeiro horrível, ou o contrário disso, se é que não flutuo, por falta de “gravidade”.
Jamais fui prudente o bastante ou construtor de diques e sangradouros, capazes de impedir, a tempo, devastações que se erguem contra paisagens-internas-psicológicas.
Paixão é torrente que se agiganta em grandes ondas, avança rugindo e ameaça as almas mar-av-ilhadas. Jamais evitei esse desamparo, edificando muralhas protetoras intransponíveis.
Milagre primário é o rosto humano. Paralisa a pessoa por seu aspecto esplendoroso, se esta cede ante ele como a coisa fantástica que de fato é. Jamais reprimi, permanentemente, uma sensação arrebatadora e miraculosa, de modo a poder funcionar com equanimidade, usando rostos e corpos para fins de rotina.
Como colher o fulgor de uma estrela e armazená-lo em si, sem o custo de sérios prejuízos? Como olhar de frente uma face sublime e vencer o temor do real, da intensa concentração de maravilha e poder naturais; o pavor de ser esmagado pelo universo tal como é ao ser essa verdade do universo focalizada num rosto humano?
Penso que encarar certas pessoas seja comparável à fatalidade inevitável de ser consumido pela perfeição numa fração de segundo - eva-porar, ao obedecer a sedução irresistível de um "canto" armadilhoso. Encarar certas belezas se faria arriscado como voltar-se e fixar o olhar numa fábula viva e radiante; como fitar a formosura de uma corporalidade sublime - fatal como contemplar, a olhos nus, as feições de uma Vênus encarnada...
Quem, em sã consciência, poderia negar a miraculosidade de um rosto belo e trans-parente de Eternidade?

Vassum Crisso

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Negra é a cor da minha pele

Negra é a cor da minha pele
Eduardo de Oliveira


Nada fui! Nada sou! Nada serei,
Só porque negra é a cor da minha pele!
Mesmo que tudo eu dê, nada terei
nesta Sodoma, em que a ambição a impele!

Diante destes racistas é que eu hei
de amar o bem, antes que a dor revele
que, por ser negro, ainda sustentarei
seu império que, a tempos, me repele!

Eu represento a espécie sofredora
de indivíduos anônimos, de párias,
atores de uma história aterradora

Pobre do negro, pobre de quem sonha
como eu, que dentre as almas solitárias
somente pude ser a mais tristonha...

Negra é a cor da minha pele, in Túnica de ébano

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O que é salvação?

O que é salvação?
Miguel Garcia

Salvação é livrar-se das estratégias infantis utilizadas para manter a autoestima face ao pânico de uma situação real: é negar-se a abraçar o terror. As técnicas de mentir para si mesmo convertem-se em armaduras que conservam a pessoa encarcerada. As defesas de que imaginamos carecer para nos impulsionar confiantemente no existir e, a tentativa de manter elevada a autoestima, tornam-se armadilhas para vida inteira.

Salvação é demolir o que for necessário no afã de encontrar si mesmo. É lançar fora todos os empréstimos culturais e enfrentar a tempestade da vida, nu.

Salvação é não alimentar ilusões a respeito do anseio por liberdade. Não acomodar-se na prisão de defesas de caráter que, embora vital (o caráter), não passa de mentira.

Salvação é não mimetizar aqueles presos que se sentem confortáveis em rotinas limitadas e protegidas, uma vez que a ideia de liberdade condicional no amplo mundo de probabilidades, acidentes e escolhas, aterroriza os tais institucionalizados. Na prisão das máscaras que nos obrigamos a vestir, podemos fingir e achar que de fato somos nossas representações, que o mundo é controlável, que há uma razão para vida, uma justificativa pronta para a ação de cada um de nós. Podemos “viver” automática e displicentemente no desespero de garantir ao menos um quinhão mínimo das grandiloquências culturais programadas – daquilo que alguns estudiosos chamam de heroísmo da prisão: a presunção dos que “estão por dentro e que sabem das coisas”.

Salvação é negar a si mesmo, tomar certa carga de consciência perturbadora a respeito do real, sobre os próprios ombros (cruz) e seguir de um modo sacrificial (responsável), vida à dentro-e-à-fora.

Salvação é ter coragem de ver o mundo como ele é de fato e de verdade, é fitar a situação criatural sem distorcê-la com falsas expectativas, mesmo que oriundas de tradições e dogmas religiosos.

Salvação é não negar a condição animal, o contrário disso é terror.

Salvação é admitir ser uma criatura que defeca, é con-vida-r o oceano primevo de angústia animal para inundar abismos mentais. 

Salvação é compreender que essa angústia seria resultante da percepção da verdade quanto à situação de cada pessoa, seria mais que angústia animal, seria angústia humanal: aquela que decorre do paradoxo de sermos membros da humanidade e, ao mesmo tempo, primos dos primatas conscientes da inevitável finitude.

Salvação passa por ser capaz de lidar com o significado de ser um bípede consciente; essa ideia ridícula, senão monstruosa de saber-se saco de estrume ambulante, comida para vermes, cadáver adiado.

Salvação passa por esse nível de compreensão aterroriz-ante: ter emergido do “nada”, ter um nome, consciência do próprio eu, sentimentos íntimos profundos, um cruciante anelo interior pela vida e pela auto-expressão e, apesar de tudo isso, morrer.

Salvação é aprender a enfrentar a própria impotência natural e a ideia da morte.

Salvação é “morrer” para “nascer” verdadeiramente, é provar o gosto da morte como se ela estivesse presente.

Salvação é fazer uma passagem ao “nada”, é chegar ao ponto crítico, é virar numa esquina dentro de si mesmo: algo tem de ceder!

Salvação é quebrar a resistência inata em seu interior, liquefazer o que for imprescindível, é derrotar a armadura emocional do caráter, livrar-se das ideias fantásticas, admitir e abandonar a auto-tapeação caracterológica acerca da realidade e fitar a vida no rosto.

Salvação é perceber que tudo na vida é problemático, é sentir-se à vontade para sentir-se “perdido”. . .

Salvação é perceber-se arruinado, aquele que aceita isso já começou a encontrar-se e a colocar-se em terreno firme.

Salvação é ter a mente desimpedida, é agir feito os náufragos que, olhando em torno à busca de algo a que se agarrar, esse olhar trágico, implacável, absolutamente sincero que lançam sobre seu ambiente, torna-se possibilidade concreta e redentora.

Salvação é quando a pessoa põe em ordem o caos de sua vida. Eis as únicas ideias genuínas sobre salvação, segundo algumas mentes que consultei; tudo o mais é retórica, pose, farsa.
Quem não se sente realmente perdido não tem escapatória; quer dizer: nunca se encontrará, nunca se defrontará com sua própria realidade, nunca será salvo, portanto.  

Vassum Crisso