sexta-feira, 15 de junho de 2012

Pedir e suplicar é como falar mal de Deus


Pedir e suplicar é como falar mal de Deus
Por Miguel Garcia

As considerações do teólogo e filósofo Andrés Torres Queiruga sobre súplicas/oração de petição e afins, resumem-se basicamente nos seguintes tópicos:

1 – A oração é fundamental na vida religiosa.

2 – Existe uma íntima dialética entre a oração de uma pessoa e o que a mesma pensa de Deus.

     3 – É de extrema urgência revisar muito a fundo o modo de orar, para que seja adequado à nova imagem de 
Deus exigida pela sensibilidade atual, o que não significa “acomodar-se à figura deste mundo”, mas absolutamente o contrário: de aproveitar a chamada dos “sinais dos tempos” como uma profecia que nos chega do melhor da evolução cultural e de sua recuperação na teologia, para realizar uma autêntica conversão.

4 – Também os discípulos começaram a perceber a novidade que Jesus introduzia na imagem de Deus e compreenderam a necessidade de mudar seu modo de orar (Lc 11,1).

5 – O ensinamento de Jesus sobre o Abbá (papai), que em geral nos parece simples, é sério e delicado; tendemos a obscurecê-lo, carregando-o com nossos medos e deformando-o com nossos fantasmas, continuamente. E é aí quando Deus nos escapa para o além, para o céu, e acabamos por vê-lo distante, dominador e justiceiro. Por essa razão, necessitamos redescobrir constantemente esse rosto que Jesus procurou nos revelar.

6 – Deus é amor (1Jo 4,8.16) – todo o seu ser consiste em amar, nos criou e continua criando-nos e sustentando-nos, pois a criação é um ato contínuo – para a nossa realização e nossa felicidade (não, portanto, “para servi-lo” que nos criou, nem “para sua glória”, ao menos no sentido normal que todos atribuem a essas palavras).

7 – Como criador a glória de Deus é nossa vida; como pai/mãe sua alegria é ver nossa alegria, e se deleita com nossos êxitos e realizações e toda a ação de Deus na comunidade é dirigida única e exclusivamente a ajudar a salvar.

8 – Em Jesus nem sequer compete nossa expectativa , pois seu amor nos precede desde de sempre (Jo 6,44); que nos precede sem condições (Mt 5,45). Daí o chamado de Jesus à confiança total (Lc 12,7).

9 – Em Jesus aprendemos que não necessitamos pedir nada porque já nos está dando tudo. O que necessitamos é justamente o contrário: deixar-nos convencer, ajudar e salvar; confiar que, apesar das aparências, ele está sempre conosco, fazendo todo o possível por nosso bem e nossa felicidade. Se algo falha, não é nunca de sua parte, porque o que se opõe a nosso bem opõe-se identicamente a seu amor por nós (e com maior força, se é possível: também os pais humanos vivem antes e com maior intensidade os males de seus filhos).

10 - Quando algo que poderia ter solução não a recebe é porque ou não colaboramos com Deus. (o nós diz respeito à individualidade e à coletividade, posto que nem sempre somos responsáveis diretos pelas coisas que nos sobrevém).

11 – Cabe sim falar em petição; porém de Deus para nós: para que nos deixemos salvar, para que acolhamos seu chamado e seu impulso em favor dos irmãos necessitados, pois é esse o sentido mais genuíno e, no fundo, único do “mandamento” do amor.

12 - O exame de nossas orações de petição revela que a pessoa que pede/suplica em oração está implicando objetivamente – gravando em seu inconsciente individual e propagando no imaginário coletivo as seguintes inverdades, distorções e monstruosidades a respeito de si e  de Deus:

  
-           - Que ela percebeu a necessidade e tomou a iniciativa: é boa e procura convencer a Deus para que também ele o seja;
Que em troca, Deus se mantém passivo, ou pelo menos não suficientemente ativo e generoso até que ela (a pessoa que suplica) o convença, se for capaz.
         Que se num futuro não muito distante o pedido ou súplica não for atendido, a lógica mais elementar impõe a consequência: Deus “não ouviu nem teve piedade”.
   Que Deus poderia, se quisesse, solucionar seus males e sofrimentos - dela e do mundo inteiro, porém, ao que parece, não quer fazê-lo.

13 – Mesmo sem pretendê-lo em nossa intenção consciente, certamente, porém implicando-o de modo necessário na objetividade do que decidimos, estamos projetando uma imagem monstruosa de Deus quando suplicamos e pedimos qualquer coisa. Não apenas ferimos a ternura infinita de um amor que não pensa mais do que em ajudar e salvar, mas acabamos por dizer, implicitamente, algo que não nos atreveríamos a dizer nem do mais infame dos humanos.  Compreendemos que Deus não pode ser amoroso e monstruoso ao mesmo tempo, portanto, “se estivesse a seu alcance”, não teria dúvidas em eliminar do mundo tanto mal e tanto horror, que ele não seria capaz de tão inconcebível monstruosidade.

14 – Ao Deus de Jesus não é preciso suplicar e convencer. O Deus de Jesus não se move com dádivas e sacrifícios e não favorece a alguns poucos, não legitima as paupérrimas imagens divinas que estão transmitidas, tampouco os estranhos comércios que se formam em torno das mesmas.

15 – Compreendemos que a boa intenção supre muitas coisas e que a linguagem tem outras dimensões além da lógica e objetiva, de tal modo que nem tudo depende dela, no entanto, não se deve chegar à contradição entre as diferentes dimensões (é certo que às vezes até uma blasfêmia pode ser “oração”; contudo, não se deve recomendar tal modo de orar...), que não se pode jogar com questões tão extremamente delicadas: ou purificamos as imagens de Deus que abrigamos no imaginário ou isso poderá e será usado para nutrir ateísmos, além de provocar angústias, neuroses e desesperos.

16 – A resistência a qualquer tipo de reconfiguração da oração parece ter apoio e garantia da própria Escritura. Porque é evidente que não só são copiosas as petições em toda ela, mas o próprio Jesus parece recomendá-la encarecidamente: “Pedi, e ser-vos-á dado” (Mt 7,7; Lc 11,9). O dado é inegável, mas também o é que exige interpretação. Logo de saída, basta lê-lo para perceber que, tomado ao pé da letra, seria uma enorme falsidade: quantas petições, inclusive feitas com todas as garantias litúrgicas e de conteúdo, são outorgadas? Queiruga pergunta! Por outro lado, quando se examina de perto a questão, aparece logo a enorme cautela de Jesus – naquele tempo e naquela cultura! – ao falar do tema:
Quando orardes, não multipliqueis palavras como fazem os pagãos; eles imaginam que pelo muito falar se farão atender. Não vos assemelheis, pois, a eles, porque vosso Pai sabe do que precisais, antes que lho peçais (Mt 6, 7-8).
Marcos, por sua vez, cita uma frase significativa e tão estranha que causou problema já nos próprios manuscritos, segundo Queiruga:
Por isso que vos digo: Tudo o que pedis orando, acreditai que o recebestes, e vos será concedido (Mc 11, 24).

17 - Finalmente, Torres Queiruga nos faz perceber que a interpretação bíblica mostra que, na exortação a pedir (Mc 11,24), a verdadeira ênfase não está em pedir muito, e sim em confiar muito. A famosa parábola do “amigo importuno” pertence às parábolas “de contraste” que insistem no “muito mais” da bondade de do amor de Deus. Bondade que supera todo o pensável e imaginável: torna-se inconcebível que um amigo falte desse modo à hospitalidade, “quanto mais Deus!”.  É impossível que ele falhe conosco: a segurança é absoluta! Queiruga nos convoca a averiguar essas últimas afirmações em Lc 11,5-13; 7,7-11; e também na parábola do juiz iníquo: Lc 18, 1-8. Segundo Queiruga a aplicação é óbvia:

Se algo busca salientar tudo o que estamos dizendo até aqui é justamente essa confiança sem limites, de tal modo que a aparente infidelidade à letra acaba se demonstrando como mais profunda fidelidade ao espírito.
E note-se, além disso, que dessa maneira não se renuncia a nenhum modo nem dimensão da oração: tudo quanto vivemos e experimentamos diante de Deus, tudo de que necessitamos e tudo que desejamos podemos expressá-lo sem recorrer à petição. Com a vantagem de que então o expomos com toda a verdade, pois não ferimos o infinito respeito que Deus merece de nós em seu amor e em sua iniciativa absolutos. Pense-se, para continuar com o exemplo, que outra profunda verdade e que distinto clima eclesial dai redundariam se a fórmula fosse deste teor ou semelhante:

- Senhor, em nossa preocupação com o sofrimento e o mal que nos atinge e que também atinge o resto da família humana, reconhecemos a petição de teu amor compadecido, que nos chama a que, superando nosso egoísmo e miopia, colaboremos contigo, ajudando com generosidade os inúmeros necessitados ao nosso redor e aceitando a carga de impossibilidades que se nos apresentam por conta de nossa condição mortal/humana. Senhor, queremos escuta-lo e enveredar pelo caminho da piedade de modo a que possamos ajudar a nós mesmos e a nossos irmãos.

18 - Oremos com o teor do “modelo” acima ou com teores semelhantes: sejamos cri-ativos, pois! Em contraste com todo e qualquer modelo que nos isenta de responsabilidades e acaba por incriminar o Amor que não sabe, não pode e não está interessado em nada além de nos amar, apoiar e sustentar intimamente: Deus é amor.

Pautado pelo texto de Andrés Torres Queiruga - teólogo e escritor galego. Realizou estudos no seminário de Santiago de Compostela e na Universidade de Comillas, passou dois anos em Roma realizando a sua tese. Foi professor de Teologia no Instituto Teolóxico compostelá e de Filosofia da Religião na Universidade de Santiago de Compostela. É membro da Real Academia Galega e do Consello da Cultura Galega; foi um dos fundadores e diretor da revista Encrucillada - PELO DEUS DO MUNDO NO MUNDO DE DEUS. Edições Loyola -

Vassum Crisso

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