segunda-feira, 9 de abril de 2012

O que é salvação?

O que é salvação?
Miguel Garcia

Salvação é livrar-se das estratégias infantis utilizadas para manter a autoestima face ao pânico de uma situação real: é negar-se a abraçar o terror. As técnicas de mentir para si mesmo convertem-se em armaduras que conservam a pessoa encarcerada. As defesas de que imaginamos carecer para nos impulsionar confiantemente no existir e, a tentativa de manter elevada a autoestima, tornam-se armadilhas para vida inteira.

Salvação é demolir o que for necessário no afã de encontrar si mesmo. É lançar fora todos os empréstimos culturais e enfrentar a tempestade da vida, nu.

Salvação é não alimentar ilusões a respeito do anseio por liberdade. Não acomodar-se na prisão de defesas de caráter que, embora vital (o caráter), não passa de mentira.

Salvação é não mimetizar aqueles presos que se sentem confortáveis em rotinas limitadas e protegidas, uma vez que a ideia de liberdade condicional no amplo mundo de probabilidades, acidentes e escolhas, aterroriza os tais institucionalizados. Na prisão das máscaras que nos obrigamos a vestir, podemos fingir e achar que de fato somos nossas representações, que o mundo é controlável, que há uma razão para vida, uma justificativa pronta para a ação de cada um de nós. Podemos “viver” automática e displicentemente no desespero de garantir ao menos um quinhão mínimo das grandiloquências culturais programadas – daquilo que alguns estudiosos chamam de heroísmo da prisão: a presunção dos que “estão por dentro e que sabem das coisas”.

Salvação é negar a si mesmo, tomar certa carga de consciência perturbadora a respeito do real, sobre os próprios ombros (cruz) e seguir de um modo sacrificial (responsável), vida à dentro-e-à-fora.

Salvação é ter coragem de ver o mundo como ele é de fato e de verdade, é fitar a situação criatural sem distorcê-la com falsas expectativas, mesmo que oriundas de tradições e dogmas religiosos.

Salvação é não negar a condição animal, o contrário disso é terror.

Salvação é admitir ser uma criatura que defeca, é con-vida-r o oceano primevo de angústia animal para inundar abismos mentais. 

Salvação é compreender que essa angústia seria resultante da percepção da verdade quanto à situação de cada pessoa, seria mais que angústia animal, seria angústia humanal: aquela que decorre do paradoxo de sermos membros da humanidade e, ao mesmo tempo, primos dos primatas conscientes da inevitável finitude.

Salvação passa por ser capaz de lidar com o significado de ser um bípede consciente; essa ideia ridícula, senão monstruosa de saber-se saco de estrume ambulante, comida para vermes, cadáver adiado.

Salvação passa por esse nível de compreensão aterroriz-ante: ter emergido do “nada”, ter um nome, consciência do próprio eu, sentimentos íntimos profundos, um cruciante anelo interior pela vida e pela auto-expressão e, apesar de tudo isso, morrer.

Salvação é aprender a enfrentar a própria impotência natural e a ideia da morte.

Salvação é “morrer” para “nascer” verdadeiramente, é provar o gosto da morte como se ela estivesse presente.

Salvação é fazer uma passagem ao “nada”, é chegar ao ponto crítico, é virar numa esquina dentro de si mesmo: algo tem de ceder!

Salvação é quebrar a resistência inata em seu interior, liquefazer o que for imprescindível, é derrotar a armadura emocional do caráter, livrar-se das ideias fantásticas, admitir e abandonar a auto-tapeação caracterológica acerca da realidade e fitar a vida no rosto.

Salvação é perceber que tudo na vida é problemático, é sentir-se à vontade para sentir-se “perdido”. . .

Salvação é perceber-se arruinado, aquele que aceita isso já começou a encontrar-se e a colocar-se em terreno firme.

Salvação é ter a mente desimpedida, é agir feito os náufragos que, olhando em torno à busca de algo a que se agarrar, esse olhar trágico, implacável, absolutamente sincero que lançam sobre seu ambiente, torna-se possibilidade concreta e redentora.

Salvação é quando a pessoa põe em ordem o caos de sua vida. Eis as únicas ideias genuínas sobre salvação, segundo algumas mentes que consultei; tudo o mais é retórica, pose, farsa.
Quem não se sente realmente perdido não tem escapatória; quer dizer: nunca se encontrará, nunca se defrontará com sua própria realidade, nunca será salvo, portanto.  

Vassum Crisso

Nenhum comentário: