segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Será que é possível ser amigo de patrão?

RELAÇÕES SOCIAIS E NÃO-SOCIAIS

As relações de trabalho, de acordo com o que eu disse, não são relações sociais, porque elas se fundam no compromisso de cumprir uma tarefa e, nelas, o cumprimento da tarefa é a única coisa que importa. Em outras palavras, para adotar o compromisso de trabalho é essencial que os participantes sejam pessoas, seres multidimensionais, mas uma vez assumido o compromisso, o fato de os participantes serem pessoas e terem outras dimensões relacionais não tem nenhuma pertinência. Isso se nota quando aquele que aceita o compromisso de trabalho tem alguma dificuldade na sua realização. Quando isso ocorre, o patrão se queixa e diz: “— Não vou lhe pagar, você perdeu a semana: não veio, não cumpriu, não lhe pago. — Mas, senhor — balbucia o empregado — minha mulher..., meu filho..., minha sogra... — Olha, — replica o patrão — as coisas pessoais não entram aqui, a única coisa que importa é a tarefa.” Ao mesmo tempo o empregado, ainda que tenha sido negado em suas outras dimensões, sabe que num certo sentido o que o patrão disse é legítimo frente ao acordo de realizar uma tarefa, mas se queixa e se sente injuriado. Nosso problema é que confundimos domínios, porque funcionamos como se todas as relações humanas fossem do mesmo tipo, e não são. As relações humanas que não se baseiam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência não são relações sociais. As relações de trabalho não são relações sociais. O mesmo ocorre com as relações hierárquicas, pois estas se fundam na negação mútua implícita, na exigência de obediência e de concessão de poder que trazem consigo. O poder surge com a obediência, e a obediência constitui o poder como relação de negação mútua. As relações hierárquicas são relações fundadas na supervalorização e na desvalorização que constituem o poder e a obediência e, portanto, não são relações sociais. Comumente falamos como se o outro detivesse o poder, mas, na verdade, isso não é assim. Lembro que, durante o governo do Presidente Allende, foi nomeado Ministro do Interior um militar, que devia pôr fim a uma greve de caminhoneiros. Ele dava ordens e não acontecia nada. Onde está o poder do militar? Na obediência do outro. Se dou uma ordem ao soldado e ele não a obedece, onde está meu poder? O poder não é algo que um ou outro tem, é uma relação na qual se concede algo a alguém através da obediência, e a obediência se constitui quando alguém faz algo que não quer fazer cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si mesmo porque, para evitar ou obter algo, faz o que não quer a pedido do outro. O que obedece age com raiva, e na raiva nega o outro porque o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na convivência. Ao mesmo tempo, o que obedece nega a si mesmo ao obedecer e pensar: “Não quero fazer isto, mas se não obedeço me expulsam ou me castigam, e não quero que me expulsem ou castiguem.” Mas o que manda também nega o outro e nega a si mesmo ao não se encontrar com o outro como um legítimo outro na convivência. Ele nega a si mesmo porque justifica a legitimidade da obediência do outro com sua supervalorização, e nega o outro porque justifica a legitimidade da obediência com a inferioridade do outro.
Assim, as relações de poder e de obediência, as relações hierárquicas, não são relações sociais. Um exército não é um sistema social. No entanto, entre os membros de um exército podem se dar relações sociais. Para ver isto basta observar a literatura que revela situações da vida cotidiana dos soldados. Por exemplo, o que acontece entre um general e seu ordenança. Cena: feliz, o ordenança limpa o uniforme do general e conversam: “— Onde o senhor vai esta noite meu general? — Vou sair. — E... é boa pessoa, a moça? — Sim, claro, é muito linda!” Até aí a relação social anda bem, mas de repente o ordenança diz: “— Meu general, sabe, acho que o que me pediu para fazer ontem não vai dar. — Você tem que fazer o que disse! — Mas, meu general... — É uma ordem!”. Acabou-se a relação social! A amizade entre o ordenança e o general não existe mais, eles estão agora numa hierarquia. Os seres humanos não somos o tempo todo sociais; somente o somos na dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. Entretanto, na biologia humana o social é tão fundamental que aparece o tempo todo e por toda parte. No instante em que o patrão escuta um operário ou um empregado sobre a doença de sua mulher aceitando sua legitimidade, aparece a pessoa que realiza o operário ou empregado e surge uma relação social. Mas o patrão que escuta não é um bom patrão, porque confunde uma relação que devia ser exclusivamente de trabalho com uma relação social. O bom patrão é o que cumpre seus compromissos com seus empregados e com as leis ou acordos comunitários que regulam os acordos de trabalho. É justamente porque as relações de trabalho não são relações sociais que são necessárias leis que as regulem. No marco das relações sociais não cabem os sistemas legais, porque as relações humanas se dão na aceitação mútua e, portanto, no respeito mútuo. Os sistemas legais se constituem como mecanismos de coordenação de conduta entre pessoas que não constituem sistemas sociais. Dentro do sistema social opera-se numa congruência de conduta que se vive como espontânea, porque é o resultado da convivência na aceitação mútua. Se vocês olharem a história, vão compreender que os sistemas legais surgem quando as populações humanas se tornam tão grandes que deixam de ser sistemas sociais e se fragmentam em comunidades sociais menores mas independentes, ou dão origem, em seu interior, a comunidades não-sociais que abrem novos espaços de interações fundadas em outras emoções diferentes do amor. Eu digo que os fenômenos sociais têm a ver com a biologia, e que a aceitação do outro não é um fenômeno cultural. Além disso, afirmo que o cultural, no social, tem a ver com a delimitação ou restrição da aceitação do outro. É na justificativa racional dos modos de convivência que inventamos discursos ou desenvolvemos argumentos que justificam a negação do outro. Ensinamos às crianças, desde pequenas, a rejeitar certos tipos de pessoas e animais. Assim, se a mãe vê que seu filho quer brincar com um outro de quem ela não gosta, ela diz: “— Não brinque com esse menino, ele é um maltrapilho.” Isto acontece conosco sem nos darmos conta, porque vivemos numa cultura que faz isso, e temos que refletir para evitá-lo. Os cães dos ricos rosnam para os pobres. Para quem eles rosnam? Para a negação do outro que faz o rico. Estou usando a palavra rico para falar de uma pessoa que nega o outro com medo de perder o que possui. Meu cachorro sabe exatamente quem são meus inimigos. Como sabe? Porque eu os nego na minha dinâmica emocional, ao mover-me nos domínios de ação que ela traz. Se minha emoção é a rejeição, minha conduta é não aceitar o outro como um ser humano legítimo na convivência e, se pertencemos à mesma cultura, ele percebe, ainda que eu queira ocultar-lhe, porque pertencemos ao mesmo domínio de congruência estrutural. Não podemos evitar nossa biologia. E, além disso, para que evitá-la se ela nos constitui? O melhor é conhecê-la.

Fonte: Emoções e linguegem na educação e na política - Humberto Maturana

Vassum Crisso!

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