quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Sejamos Piedosos

Sejamos Piedosos
Miguel Garcia

Dizem que o amor enfraquece, mas isso é mentira, o amor fortalece. Dizem que a estética é tudo, que a simetria e os bens temporais são divindades que rejeitam serem contrariadas, mas isso também é mentira, somos mais do que nossa aparência, muito mais do que a matéria que "possuímos".
Sejamos piedosos com aqueles que se refugiam na pura humanidade, com os que brincam de extasiarem-se até o desfalecimento.
Sejamos piedosos com os sedutores de olhos cintilantes, bocas soberbas, sorrisos armadilhosos, dentes lacerantes da cor do marfim. Piedade das pessoas cujos ombros pesam sob a pressão de angustias sem identidade. Jamais invejem ou rivalizem com tais penitentes, piedade, tenham piedade.
Piedade, pois só o amor cria fortalezas. Eis a coluna vertebral dos heróis invencíveis: o amor. Piedade dos que nada dizem, mesmo que falando sem parar – mudos verbosos, dos que nada escrevem, redigindo freneticamente, tais como eu.
Piedade dos que rejeitam amar, dos que se agitam atrás de tudo que se move, sem contudo prenderem-se a nada e a ninguém.
Piedade dos devassos – disso-lutos, daqueles que perderam a firmeza de ânimo, dos abortados de si, dos que já não são, não vivem, não se consideram, dos que só lêem no olhar de outrem, auscultam no escasso indagar coletivo, exprimem refletindo apenas o que é consensual.
Piedade das criaturas belas demais, daquelas que com um físico "ideal", enredam em suas camas, insaciáveis degustadores de emoções fugazes e falsas promessas românticas, piedade dos predadores e presas de um desejo. Piedade dos que enganam sua sede de amor com o sexo, dos incapazes de compreender a si mesmos. Piedade dos que depois de alguns abraços, sentem que precisam ir além, descobrirem-se, “desnudar” outros, daqueles que preferem corpos nus a almas desvestidas, que se velam em orgias pra não serem quem são na verdade, piedade.
Piedade dos que adoram falsas divindades, pois contornarão todo o mar da existência em vão, esperarão da vida o que ela lhes negará, e, essa espera absurda, esse tolo “objetivo” é sua paixão, o adiamento idiota que os impede de viver, é a vida deles sendo disperdiçada.
Por que será que a humanidade torna vazio o que está cheio?
Piedade de mim, descobri-dor de que amar se faz urgente!
Que eu jamais balbucie de horror, em “inferno” algum, a canção que aprendi noutros tempos e lugares... lá onde e quando eu era um menino-deus:

Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que não causei

Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada que eu quero me suprime
De que por não saber ainda não quis

Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que não sofri
(Sueli Costa / Abel Silva)

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