Era uma vez um homem que acreditava
Miguel Garcia
Era uma vez um homem que veio do mundo invisível para o visível por um ato de Deus, vivia sob um céu de estrelas fixas e, o fato de ‘estarem ali’, constituía um conforto para ele; davam-lhe um senso de horizonte conhecido.
Era uma vez um homem que vivia em segurança sob o pálio do quadro 'mundial' judaico-cristão - fazia parte de um grande conjunto e, orgulhava-se do que imaginava ser seu projeto de vida completamente mapeado, inconfundível.
Era uma vez um homem que ouviu e creu na mensagem de que lá fora havia um Pai bondoso e amável olhando por ele, pronto para recebê-lo, atento aos seus interesses o tempo todo.
Cumpridor de seu dever para com o Criador, vivia sua vida com dignidade e fé, casando-se como um dever, procriando como um dever, ofertando a vida inteira (como um Cristo fizera) ao Pai. Por sua vez, ele era justificado pelo Pai e recompensado com a vida eterna na dimensão invisível. Pouco importava que a Terra fosse um vale de lágrimas, de horrendos sofrimentos, de incomensurabilidade, de torturante e humilhante mesquinharia, de doença e morte, um lugar que as pessoas sentiam não ser o delas; “o lugar errado”; o lugar de onde nada se podia esperar, nada realizar para si mesmo. Pouco importava a não linearidade, porque afinal de contas ele servia a Deus e assim servia ao servo de Deus. Em resumo, seu heroico projeto de vida estava assegurado, embora ele fosse nada.
Era uma vez um homem satisfeito com a crença de que tanto os escravos, aleijados, imbecis, os simples e os poderosos, poderiam ser metamorfoseados em heróis garantidos, simplesmente recuando um passo do mundo, para outra dimensão das coisas, a dimensão chamada céu.
Era uma vez um homem que sufocava a consciência de sua animalidade (a coisa que as pessoas mais desejam negar), travestindo tal consciência na própria condição para ir além de tudo o que é finito, inevitavelmente mortal e vazio. Era uma vez um homem que acreditava.
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