terça-feira, 27 de março de 2012

Nossa! Senhor Aparecido...

Nossa! Senhor Aparecido...
Miguel Garcia

 Virgem de pureza e "protetor" das artes. Seu santuário: corações famintos, sua festa: o existir.
 Há uma unica fonte sobre o achado de sua “imagem” in-terna:
 Sua história tem início em meados de estrelas que não voltam nunca mais. 
Quando chegou à cidade-Dutra remediada, a notícia correu ligeira por ruas estreitas e escuras, despertando sorrisos até então acanhados demais para luzirem.
 Desejosa de obsequiar-se com o melhor das próprias entranhas, dona Dica lançou redes no rio de amores bandidos, afetos furtados, desejos mal-ditos e sonhos afobados. Após  algumas tentativas frustradas, descendo o curso da escassez dos limites e, quase sem esperança, deitou malhas em “águas turvas”, apanhando o corpo de um menino negro.
 Nossa! Senhor Aparecido “nunca teve cabeça”. 
Dona Dica obteve copiosa extração de outros frutos na imensidade dos dias, quanto a seu rebento, continua descabeçado feito maré que começa a baixar e intrigando mais do que causando admiração.
Nossa! Senhor Aparecido!...

Vassum Crisso

quinta-feira, 22 de março de 2012

O que é sexo? (Parte 1)

O que é sexo? (Parte 1)
Miguel Garcia

Sexo é contorção e reviravolta: cega e diligente busca do sentido da vida. Se não tenho um Deus no céu, uma dimensão invisível que justifique a visível, então pego o que estiver mais perto e à mão e resolvo os meus problemas com isso.
Fazer amor é buscar benefí-CIO-s, é lançar a depressão pelo fardo da vida aos pés de um parceiro (a) “divino” (a), é livrar-se da dolorosa consciência de si próprio, é exorcizar a sensação de ser um indivíduo separado, tentando obter certo sentido de quem se é, do que a vida é e assim por diante, é varrer o pavor numa rendição emocional ao parceiro (a), é esquecer-se no delírio do estase, é mar-av-ilhar-se estimulado pela experiência.
Fazer amor é ir além de estar vergado ao peso da culpa por ser bicho-humano.
Sexo é boa regressão, é ver banido o estorvo da animalidade que ameaça a vitória da pessoa sobre a decadência e a morte.
Sexo é enlace entre o corpo e o sistema nervoso central que permite pensar, observar e interagir com o mundo exterior (consciência), indistintos durante o ato (corpo e consciência), já não são encarados como alheios à pessoa.
Sexo é redenção corpor-All, é desvanecer feito esfera celeste, é englobar-se no corpo e na  consciência de outrem; fundir-se em unidade que dilui o desarticulado e o grotesco. Fazer amor é quando “tudo” se faz natural , fun-CIO-nal, expresso como deve ser; aplacado e jus-ti-ficado.
Fazer amor é ver lançada fora a "culpa", o que obriga a própria natureza a proclamar a inocência dos amantes.
Sexo é coisa complexa; colorida; não cabe em binaridades e automatismos mentais.  Nem tudo se passa tão fácil e claramente, em se tratando daquilo que mora no fundo do paradoxo criatural.
Sexo é coisa do corpo; corpo é coisa da morte; morte é irmã gêmea natural do sexo, o que se desdobra em malogro do amor romântico como possível solução para os problemas humanais e em elemento participativo na frustração do ‘moderno’ bicho-humano.
Sexo é impedimento: se é realização do papel como animal na espécie, é ao mesmo tempo recordação de que a pessoa nada é senão um elo na cadeia de seres, intermutável como qualquer outra e completamente dispensável por si mesma.
Sexo é representação da consciência da espécie por um lado e, por outro, derrota da individualidade – da personalidade.
Sexo é revés da ordem que a individualidade consciente quer desenvolver: a ideia heroica de si mesmo como ente especial; virtuoso e repleto de dons capazes de redimir o universo.  Quem se contentaria no papel de mero animal fornicador? Quem, em “sã consciência”, abriria mão de experenciar uma finalidade realmente humana, uma contribuição verdadeiramente distinta para a vida do mundo? 
Sexo é tabu; é negação dupla: da morte física e dons pessoais distintivos.
Sexo é incomodo: caçoa do triunfo da personalidade sobre a mesmice animal, dos complexos códigos de abstenção sexual, dos mapas culturais para a moralidade pessoal impostos sobre o corpo animal, ri da noção de sacrificar os prazeres do corpo ao que se supõe o maior de todos os prazeres: a autoperpetuação da pessoa como um ser espiritual por toda a eternidade (cabeça e um par de asas, sem anus que deturpe).
Sexo é motivo de irritação: as pessoas se ressentem ao verem-se reduzidas ao corpo, porque o sexo até certo ponto às aterroriza.
Sexo é prenuncio de resistência à fatalidade.
Sexo é irmão do corpo que engendra culpa, arremete à contenção e faz sombra à nossa “liberdade”.

 Vassum Crisso

domingo, 18 de março de 2012

Amar é... (Parte 2)

Amar é...  (Parte 2)
Miguel Garcia

“Mesmo sendo errados os amantes, seus amores serão bons”... Chico e Edú 

Amar é dar con-ti-nu-idade ao projeto em causa própria: agarramos a um parceiro (a) num esforço de contestar nossa animalidade. Sem cosmologia religiosa à qual se possa adaptar tal negação, o jeito é ‘ficar’: grudar na pessoa “amada”.

Amar é procurar o tu, uma vez que a visão de mundo da grande religião supervisio-nada por Deus, morreu.

Amar é depender do parceiro amoroso (a), como resultado da perda de ideologias espirituais, tal como se dá na dependência face aos pais ou a um guru-psicológico.  

Amar é precisar de alguém, de uma “ideologia individual de justificação” para substituir as declin-antes “ideologias coletivas”. Sexo é contorção e reviravolta: cega e diligente busca do sentido da vida. Se não tenho um Deus no céu, uma dimensão invisível que justifique a visível, então pego o que estiver mais perto e à mão e resolvo os meus problemas com isso.

Amar é buscar benefí-CIO-s, é lançar a depressão pelo fardo da vida aos pés de um parceiro (a) “divino” (a).

Amar é livrar-se da dolorosa consciência de si próprio, é exorcizar a sensação de ser um indivíduo separado, tentando obter certo sentido de quem se é, do que a vida é e assim por diante.

Amar é varrer o pavor numa rendição emocional ao parceiro (a), é esquecer-se no delírio do sexo, é mar-av-ilhar-se estimulado pela experiência.

Amar é ir além de estar vergado ao peso da culpa por ser bicho-humano.
Sexo é boa regressão, é ver banido o estorvo da animalidade que ameaça a vitória da pessoa sobre a decadência e a morte. Sexo é enlace entre o corpo e a consciência, indistintos durante o ato, não mais os encaramos como alheios a nós.

Amar é redenção corpor-All, é desvanecer feito esfera celeste, é englobar-se no corpo e consciência de outrem; fundir-se em unidade que dilui o desarticulado e o grotesco. Amar é quando “tudo” se faz natural , fun-CIO-nal, expresso como deve ser; aplacado e jus-ti-ficado.

Amar é ver lançada fora a "culpa", o que obriga a própria natureza a proclamar a inocência dos amantes.

Vassum Crisso

quinta-feira, 15 de março de 2012

Amar é... (Parte 1)

Amar é... 
Miguel Garcia

Como seria simples se pudéssemos satisfazer os anelos de toda a condição humana, em segurança, no quarto de dormir! Como seria conveniente que a parceira(o) fosse Deus(a), onipotente para apoiar nossos anseios, abarcando tudo para podermos fundir nossos desejos nela (e) – mas é impossível -  Becker

Amar é tentativa desesperada de solu-cio-nar problemas da espécie bipartida. 
Amar é meter-se em situação impossível pelas próprias mãos. 
Amar é fruto da necessidade de sentir-se heroico - saber que sua vida tem importância no plano geral das coisas, da necessidade de ser especialmente bom para alguém realmente especial. 
Amar é englobar-se em algo “superior”, num significado que absorva o eu da pessoa em confiança e gratidão. 
Amar é investir na “solução” romântica. 
Amar é fixar o impulso de ser o centro das atenções, em outra pessoa, sob a forma de objeto de amor. 
Amar é buscar autoglorificação num parceiro (a) amoroso, é quando esse último torna-se o ideal divino no qual a própria vida "encontra" realização. 
Amar é quando todas as necessidades espirituais e morais passam a ser focalizadas em um individuo. 
Amar é quando a espiritualidade que, outrora se referia a outra dimensão das coisas (O Sagrado), é agora trazida para a terra e recebe a forma de outro ser humano.  
Amar é quando a própria salvação não é mais atribuída a uma abstração como Deus, mas pode ser procurada “na beatificação do outro”. 
Amar é quando se vive uma cosmologia de dois. 
Amar é quando o parceiro humano absorve em si a dimensão inteira do divino. 
Amar é deificar o objeto amoroso. 
Amar é crer no que as canções românticas dizem à respeito do amado: que ele é a primavera, o fulgor dos anjos, com olhos como estrelas, que a experiência do amor será divina, como no céu. 
Amar é ouvir ecos da fome de uma experiência real nas canções românticas - o reflexo de um sério anseio emocional da criatura. 
Amar é enxergar perfeição divina no objeto amoroso - é quando o próprio eu da pessoa sente-se elevado ao juntar destinos. 
Amar é sentir-se de posse da máxima medida possível para atingir o ideal de exorcizar todos os conflitos e contradições interiores e ainda os muitos aspectos de culpa. 
Amar é a tentativa de purgar-se  em uma consumação perfeita na própria perfeição. 
Amar é uma verdadeira “justificação moral do outro”. 
Amar é o projeto de realizar o impulso de auto expansão no objeto amoroso tal como outrora foi realizado em Deus: “Deus como... representação de nossa própria vontade não resiste a nós exceto quando nós mesmos o queremos e, tampouco nos resiste a amada (o) que, ao ceder os nossos caprichos, se sujeita à nossa vontade. 
Amar é quando o objeto do amor é Deus. 
Amar é quando o Meu amor é meu Deus; se ele me aceita, minha existência ganha utilidade. 
Amar é quando o relacionamento amoroso se torna um problema religioso; é quando em sua melhor condição, o “amor” ou paixão romântica reivindica divindade e, em sendo o "amor" bem sucedido nesse intento, transforma-se num demônio que devora os corações dos amantes e por fim da cabo de si mesmo.

Vassum Crisso

terça-feira, 13 de março de 2012

Era uma vez um homem que acreditava

Era uma vez um homem que acreditava
Miguel Garcia

Era uma vez um homem que veio do mundo invisível para o visível por um ato de Deus, vivia sob um céu de estrelas fixas e, o fato de ‘estarem ali’, constituía um conforto para ele; davam-lhe um senso de horizonte conhecido.
Era uma vez um homem que vivia em segurança sob o pálio do quadro 'mundial' judaico-cristão - fazia parte de um grande conjunto e, orgulhava-se do que imaginava ser seu projeto de vida completamente mapeado, inconfundível. 
Era uma vez um homem que ouviu e creu na mensagem de que lá fora havia um Pai bondoso e amável olhando por ele, pronto para recebê-lo, atento aos seus interesses o tempo todo. 
Cumpridor de seu dever para com o Criador, vivia sua vida com dignidade e fé, casando-se como um dever, procriando como um dever, ofertando a vida inteira (como um Cristo fizera) ao Pai.  Por sua vez, ele era justificado pelo Pai e recompensado com a vida eterna na dimensão invisível. Pouco importava que a Terra fosse um vale de lágrimas, de horrendos sofrimentos, de incomensurabilidade, de torturante e humilhante mesquinharia, de doença e morte, um lugar que as pessoas sentiam não ser o delas; “o lugar errado”; o lugar de onde nada se podia esperar, nada realizar para si mesmo. Pouco importava a não linearidade, porque afinal de contas ele servia a Deus e assim servia ao servo de Deus. Em resumo, seu heroico projeto de vida estava assegurado, embora ele fosse nada.
Era uma vez um homem satisfeito com a crença de que tanto os escravos, aleijados, imbecis, os simples e os poderosos, poderiam ser metamorfoseados em heróis garantidos, simplesmente recuando um passo do mundo, para outra dimensão das coisas, a dimensão chamada céu.
Era uma vez um homem que sufocava a consciência de sua animalidade (a coisa que as pessoas mais desejam negar), travestindo tal consciência na própria condição para ir além de tudo o que é finito, inevitavelmente mortal e vazio. Era uma vez um homem que acreditava.

Vassum Crisso